A brisa da manhã alivia o calor excessivo da noite anterior. Poucas pessoas aventuram sair às cinco da matina. Mesmo assim, poucos transeuntes se dirigem à igreja, neste horário. Alguns minutos depois, a larga avenida está completamente vazia. Uma jovem moradora de uma das ruas paralelas pretende, neste dia, também ir à missa. Escolhe uma roupa domingueira e sai de casa. Ao chegar à avenida, uma rajada de vento frio bate em seu rosto, fazendo-a estremecer. Ela continua seu passo acelerado, pois o fato de estar sozinha naquela imensa avenida, assusta-a. É a primeira vez que sente medo de estar naquele lugar. De repente, o caminho se torna infinito. Um carro, como surgido do nada, emparelha-se a ela. Ela não olha e continua sua caminhada. Uma voz chama-a: “Teresa! Teresa!”. Então, a moça para e olha em direção ao carro. Num primeiro momento, não identifica a pessoa. Quem dirige o carro chama outra vez o nome dela; saca uma arma. Dispara dois tiros certeiros no coração da jovem. A mulher joga a arma no banco do passageiro e sai tranquilamente. São cinco horas e quarenta minutos. O corpo da jovem permanece caído no mesmo lugar. Algumas senhoras passam; veem o corpo estendido no chão; fazem o sinal da cruz, recriminando-a pelo excesso cometido na noite anterior. É costume, nesta cidade, as festas vararem o dia e proporcionarem este tipo de espetáculo vexatório. As beatas comentam que a mesma poderia estar em casa cuidando dos afazeres ao invés de se embriagar. Cinco minutos após, um feirante levando dois porcos abatidos, pelados e brancos, na garupa da bicicleta, resolve parar para ajudar a moça a ir para casa. Quando se aproxima, percebe sinal de sangue. Antes, porém, verifica se o sangue não está caindo dos porcos amarrados na tábua presa à garupa da bicicleta. Avexa-se. O que fazer? Aguarda poucos instantes até que surgem duas outras pessoas na avenida. Rumam à padaria. O cheiro do pão quente feito na hora atrai os sonolentos. Parecem hipnotizados. Bocejam. Esfregam os olhos. Um homem grita por socorro; pede ajuda. Os dois que pretendiam comprar pão também se aproximam do local, mas ninguém toma nenhuma providência. Realmente, não sabem lidar com essa situação. O terceiro sinal de sino chama os fiéis para a missa. Seis horas. Aproxima-se a hora de trocar o plantão nas delegacias. Um dos delegados costuma ir para o trabalho pedalando sua bicicleta. O percurso feito por ele costuma ser pela avenida principal. Ao longe, ele estranha o aglomerado de gente, naquele local. Pedala mais rapidamente. Quando se aproxima, é reconhecido pelas pessoas presentes. Alguns se afastam, temendo ser arroladas como testemunhas. O delegado fica algum tempo em silêncio e, antes que pergunte alguma coisa, várias vozes se excluem de qualquer culpabilidade. Sem dizer nada aos presentes, o delegado pega seu celular e aciona a polícia solicitando ajuda. O camburão chega. Em breve, o corpo será removido do local. Em seguida, após uma rápida e ineficiente perícia, o corpo é encaminhado ao hospital. O silêncio da missa é interrompido pelo forte barulho de sirene. Mesmo contritos, nota-se certo alvoroço no templo. Feito o reconhecimento da vítima, a família é notificada. Sete horas e trinta minutos. A missa é encerrada. A maioria dos presentes fica a perguntar o que tinha sido aquilo, o que a polícia andava atrás. As respostas são as mais variadas possíveis. É mais um dos crimes a fazer parte das estatísticas. Nascemos, crescemos, frequentamos escolas; às vezes, constituímos família, sempre, ou tão-somente fazendo parte das estatísticas. O homem que levava os porcos abatidos, pelados e brancos resolve continuar seu percurso. Monta-se novamente na bicicleta e segue rumo ao mercado. Já não é mais o mesmo. Algo o inquieta. Tem pressa de voltar para casa, proteger suas três filhas. Não quer que elas tenham o mesmo fim da jovem que ele viu pela manhã. Ele vende apressadamente os porcos, importando-se pouco com a aferição do peso. Tem os pensamentos voltados para as filhas. Não quer demorar-se muito. A cabeça dói. Precisa chegar em casa. Não suporta tanto falatório a seu redor. Cada um tem uma versão diferente para contar. Aquilo tudo chega a ser insuportável. A vida, que antes pertencia a uma só pessoa, se torna assunto público. Não deixará que o povo fale assim de uma de suas meninas. Precisa cuidar delas. A dor de cabeça aumenta. Resolve voltar cedo para casa. Meio-dia, ouvirá pelo rádio a notícia do crime. A mulher e suas três filhas não mais sairão de casa sozinhas. Vai ser preciso acompanhá-las. Como? Elas são quatro e ele somente um… Sua dor de cabeça aumenta; começa a sufocá-lo. Põe as duas mãos na cabeça. A dor dilata-lhe os olhos. Não consegue enxergar a vida como antes. Tudo está escuro, principalmente o futuro. Deita-se em sua rede, na esperança de que aquele mal-estar passe. Adormece. Já é noite e ele desperta. Tudo em casa é silêncio. A esposa e suas três filhas dormem. Sai sem fazer barulho. Dirige-se rumo ao hospital. Um soldado de plantão está lá. Para que um soldado de plantão na porta de um ambulatório? Nunca entendeu isso, agora menos ainda. Não tem tempo para tirar conclusões. Faz algumas perguntas ao soldado e sai. Anda muito. Cinco da matina. De longe, avista um punhado de gente. Deve ser ali; pensa. Resolve chegar mais perto. Acompanha todo o movimento em silêncio. O corpo da moça deixa definitivamente sua casa de morada. Uma mãe chora, o homem lembra vagamente de sua esposa. Segue o cortejo fúnebre. Terminada a cerimônia, não lembra o que está fazendo ali. Deixa que todos se afastem. Por alguns instantes, procura reconhecer alguém nos rostos sombrios das fotos. Talvez a esposa, as filhas…Ninguém conhecido. Todos se foram. Deixaram-no sozinho. Retira-se dali sem saber seu nome, de onde veio e nem para onde vai. É melhor assim.
DUAS MORTES
- Por Grande Piripiri
- Em (A) LETRADO (A), Destaques, Literatura
- 14 de março de 2025
POR RITA ESCÓRCIO

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